Era uma fria manhã na Megalópole. Nas gélidas ruas em frente à sua casa, as moradias estavam comprimidas em cubículos, em quarteirões tão caóticos quanto forçadamente fechados em quadrados, preenchidos por casas bagunçadas que sufocavam as ruas de tal forma que a única coisa que as diferenciava de becos era sua profundidade. As habitações não se diferenciavam de enormes entulhos de lixo que invadiam ferozmente as ruas. A única diferença entre ambos era que havia uma forma de vida humana, ou melhor, humanoide, vivendo dentro. As montanhas de objetos facilmente consumíveis e descartáveis, as próteses enrustidas, as sucatas das máquinas enferrujadas e os corpos de criminosos que vendiam sua própria estrutura biológica para serem úteis como lubrificantes das máquinas de guerra que eram as Facções.
Afastou o pensamento da mente ao tomar seu primeiro suspiro ao acordar. Outra noite mal dormida, outra insônia que o impossibilitava de sonhar, outra cheirada naquele ar fétido e tóxico, carregado de fuligem, sufocante plástico microscópico e ácida umidade. Todos esses elementos sufocavam o pouco oxigênio que restava, fazendo com que uma mera inspiração fosse equivalente a um afogamento. Rapidamente, colocou sua máscara metálica, ligando a sua prótese oral que se estendia aos músculos pulmonares de seu sistema respiratório, e para acessar seu uso por hoje, efetuou o pagamento acessando a Externet.
“Droga” - pensou.
O preço encareceu de novo, pelo o que conseguiu pagar, tinha que consumir breves quantidades, isso o fazia tossir a cada 15 segundos.
Levantou-se com pressa, olhou o relógio e a data.
02/09/2124
Por extenso.
02 de Guttenberg de 2124.
“Mês da Indústria Moderna” - pensou.
Sentiu fúria com essa realização. Se pudesse, arrancaria aqueles números digitais e espatifaria tudo no chão. A luz do visor de seu barato monitor refletiu sua mulher deitada na cama, conectada a baratos respiradores e sucateados detectores vitais.
“Ela já poderia estar morta” - pensou.
Batimentos tão fracos, tão fraca... talvez pudesse... vender os membros dela, para aqueles que comprariam de tudo, até mesmo partes…
“Não!” - Rapidamente realizou em sua mente.
Ideia monstruosa aquela. Apenas encostou sua palma contra o peito dela, tentando sentir as vibrações cardíacas enquanto seu seio se elevava a cada fraca respiração. Olhou novamente para o horário, estava atrasado.
Caminhou timidamente pela sua casa, fez uma checagem antes de sair correndo de sua casa.
Lubrificante? Confere.
Engrenagens reservas? Confere.
Botão que o identificava com um número de caracteres específicos? Confere.
Álbum de músicas para se distrair de um trabalho potencialmente mortal? Confere.
Pílulas de alimentação? Confere. Infelizmente, encareceram outra vez, o que fez ele conseguir só comprar uma de 500kcal.
Óculos de proteção, com monitores como lentes, para não ser cegado pelas fortes luzes neon da Megalópole? Confere.
Luvas magnéticas que faziam seus braços robóticos colarem contra a superfície metálica das Torres? Confere.
Pequeno canivete de plasma barato para auto defesa contra possíveis ladrões, guerrilheiros urbanos e, pior, os terríveis Ludistas? Gemeu de nojo ao pensar nesses nomes. Eram trabalhadores ressentidos que faziam ataques coordenados contra as Cidadelas, destruindo um andar ou todo ele. Mas, pelo menos, confere.
Antes de sair, tocou a mão de sua amada operária, um gesto que o deixou com um gosto metálico na bua. Sua amada fora perfurada e espatifada dentro de uma máquina têxtil, quase morta instantaneamente, e implorou por isso. Mas, seu amado a manteve viva, trabalhou dobrado até seus braços terem que ser substituídos por metálicos e seu pulmão por bolsas pneumáticas de aço, tudo isso para comprar próteses e mais próteses que não se diferenciavam de enrustidas sucatas infectadas, em um desesperado esforço para manter seu coração ainda batendo.
Em conversas com sua mente pouco consciente, como uma alcoólatra, ela o amaldiçoava por fazê-la continuar a viver. Mas ele era sortudo, diferente da maioria dos outros membros do Produtoriado, Operários, Gastronômicos e Químicos, ele pelo menos tinha alguém físico para amar. Os outros amavam mais pixels na tela. Por ter alguém físico que o amava, era superior a quem amava apenas hologramas, pois tinha alguém que podia tocar, mesmo que ela o odiasse a cada segundo ainda consciente.
Afastando os pensamentos, subiu as escadarias em passo lento, o homem mancava a cada passo com a prótese enferrujada, sentindo os efeitos da noite mal adormecida em sua persona, andou vários metros até ser parado por um assaltante.
Após virar a quarta esquina, foi pego no fogo cruzado entre um grupo e uma gangue: um no nível mais baixo da facção e o outro no segundo menor. A onda de choque de uma explosão o arremessou contra uma montanha de sucata e corpos humanos, perfurando levemente sua cabeça com um dedo metálico, enquanto as chamas queimavam suas costas até deixá-las em carne viva. Um disparo de bala o atingiu no ar, arrancando sua orelha esquerda.
Se levantou após ter os cabelos puxados por um assaltante comum, tentou pegar seu canivete de plasma para se defender. Cortou o dedo do assaltante, mas recebeu socos desferidos com as mãos metálicas dele, e pisões de pés cujos joelhos haviam sido substituídos por pistões industriais, sendo arremessado ao chão enquanto murmurava.
“Eu preciso desses créditos mais do que você!!”
Perdeu os óculos e o canivete.
“Como não fui morto?” Pensou.
Outro golpe divino de sorte. Mal sabia que o criminoso apenas fugiu pela hemorragia do membro amputado.
Ligou seu dispositivo, Eleos.com, a única coisa que lhe ajudava em momentos como esse. O dispositivo criava uma ilusão, um holograma físico e sensível, que transmitia paz e segurança. Isso era feito por meio de nanorobôs espalhados por todo seu corpo, com um chip no cérebro, localizado na Amígdala e no córtex Pré-Frontal, que os unificava. Esse processo era chamado de 'Manifestação de Emoção'. Ao ativá-lo, o sistema o perguntou…
“Visualização única ou para terceiros?”
“Visualização única” - ele respondeu.
E todo o ambiente se tornou um grande complexo de engrenagens e andaimes que constantemente davam mal defeito e se auto destruíam, em representação de sua raiva naquele instante.
Levantou enquanto amaldiçoava aqueles criminosos. As diferentes Facções haviam surgido porque seus membros eram trabalhadores desempregados. Por que eles simplesmente não voltavam ao trabalho e o deixavam em paz? Achavam que, só porque tinham perdido o emprego por sei lá que motivos, tinham o direito de sair por aí exigindo o salário de quem ainda se esforça?!
“Malditos desempregados… Seria melhor se todos morressem logo de fome” - pensou em fúria.
No auge de sua fúria, o ambiente de repente floresceu: as casas foram substituídas por planícies e colinas cobertas de flores, o verde do esgoto transformou-se em um verde natural e vibrante. Cada pedaço de entulho substituído por uma flor igualmente enorme, e cada sucata por uma árvore gigantesca.
Respirou fundo, o cheiro podre e ácido da fuligem foi tomado por um perfume floral e artificial. Então, sentiu um toque no ombro, era uma mulher.
O toque daquela figura feminina, combinado com a paisagem calma, luxuriante e artificialmente prazerosa, fez com que ele cedesse a ela, em meio ao desespero por ter perdido suas coisas. Ele sabia que tudo aquilo, a paisagem, os cheiros, os sons, eram apenas uma manifestação de emoção criada pelo programa, industrialmente projetada para levá-lo ao prazer. Ainda assim, ele cedeu.
As prostitutas eram membros da camada mais baixa dos Biopolianos, termo originado do grego “Bio” (vida) e “Poléns” (vender), vendiam seus próprios corpos para sobreviver. Podiam se tornar soldados, ciborgues ou fascinadores, anteriormente conhecidos como influenciadores. Diferente dos membros do Produtoriado, que vendiam sua força produtiva para construir as máquinas, que já a muito tempo haviam tomado os seus trabalhos de fato, os Biopolianos estavam duas camadas acima, o que causava profundo desprezo em alguns. As prostitutas, porém, sendo de uma camada mais próxima e “baixa,” eram vistas com simpatia pelos mais pobres. Elas não vendiam o corpo em si, mas memórias. Ao invés de uma noite juntos, vendiam a lembrança de uma noite, sem contato físico de fato. Coisa que o Alvenário teve prazer de comprar.
Olhando para aquela prostituta, o rosto fino, sem nenhum excesso de carne, gordura, espinhas ou cravos, completamente lisa e magra, mesmo sabendo que a pele fora substituída por silicone industrial. Os seios, desproporcionalmente grandes para um corpo tão magro, deixavam visível o implante metálico na coluna para sustentação. Já ouvira histórias de outras meretrizes que, sem essa adaptação, tiveram as vértebras colapsadas sob o peso dos implantes. Suas curvas eram tão artificiais, tão inumanas, que a faziam mais semelhante a um andróide com fins sexuais. Algo tão bizarro e distorcido em sua aparência, que chegava a cair no "vale da estranheza" pelo quanto chegava a ser artificial. Mas andróides eram luxos dos ricos, pertencentes à camada Magna, como os Magnatas, os pobres, por sua vez, satisfaziam-se com esses sacos de silicone, mesmo que tivessem pessoas amadas.
A mulher que o abordara vestia um sobretudo preto que se camuflava com as paredes escuras ao redor. Destacava-se seus cabelos brancos pelo estresse, pele pálida pela falta de sol, e olhos vermelhos, resultado de caros implantes. O Alvenário, como já fizera antes, pagou por uma memória e nunca mais a viu.
Andando, finalmente encontrou a Cidadela onde trabalhava. Não tinha tempo para admirar toda a estrutura como já fez no dia em que foi contratado, o único dia em que olhara com admiração, pois, assim como agora, estava atrasado em todos os outros. Cada Cidadela era absolutamente colossal, verdadeiros colossos de aço, em comparação, o prédia Empire State parecia uma mera casa popular. As Cidadelas misturavam gigantescos prédios e fábricas. Ali, trabalhadores de todos os tipos podiam dormir, acordar, trabalhar, comer, ter filhos, amar e morrer no mesmo lugar, bastando alugar um dos milhares de minúsculos apartamentos, pouco mais dignos que os cubículos das casas ao redor.
Esses complexos tinham uma base circular três vezes maior que qualquer residência, onde havia entradas para cada setor de trabalho. Acima, uma imensa estrutura que, por vezes, era retangular e, por vezes, circular, lembrando as torres da burguesia na Baixa Idade Média. Não havia janelas na fachada, pois o ambiente era constantemente engolido por um nevoeiro eterno de smog, responsável pela toxicidade do ar, mas também porque todo o espaço externo era liberado para ocupar os enormes anúncios e hipnotizantes hologramas em neon.
Em cada extremidade horizontal de cada andar, havia um elevador conectado a uma estrutura cilíndrica que funcionava como um veículo aéreo, semelhante a um metrô, interligando as Cidadelas. Essa era a forma mais rápida de ir de uma Cidadela a outra, já que os carros haviam se tornado quase obsoletos, ocupando espaço demais nas ruas abarrotadas de moradias, apenas motos eram ágeis o suficiente para escalar essas ruas apertadas. De longe, esses "metrôs flutuantes" que conectavam as Cidadelas pareciam cabos eletrônicos presos ao mesmo poste.
Por fim, as Cidadelas estavam sempre crescendo, tanto vertical quanto horizontalmente, por isso, no topo de cada uma havia uma grande pirâmide de metal puro com uma luz semelhante à de um farol neon. Como também havia andaimes gigantescos, que eram acoplados constantemente para manter a construção ativa e em expansão, dia e noite.
Este era o trabalho do Alvenário. Sua função, assim como de todos os outros de seu emprego, era justamente consertar, manter e produzir o maquinário que constituía as Cidadelas em sua imensidão industrial.
“Hmm… Industriais nojentos… um dia eu ainda vou chegar lá… um dia.”
Subindo e andando apertado entre quadris e torsos de diferentes trabalhadores, ele pensou sobre os Industriais. As pessoas mais baixas da Camada Magna da sociedade, enquanto os Magnatas eram os mais altos nesta dita camada. Os Industriais eram cada um dono de uma Cidadela diferente, que competiam entre si pelos melhores produtos, enquanto todos esses pertenciam à Megacorporação, cuja proprietária era o Magnata. Os Industriais eram, então, como seus patrões. Alguns eram misericordiosos, enquanto outros não tinham limite no abuso que podiam fornecer a seus trabalhadores. Eram eles quem comandava a “Segurança”, ou melhor, as Milícias dentro das Cidadelas. Afinal, após o Estado ter sido abolido, os exércitos foram reduzidos a milícias, servindo às Megacorporações, que eram pagas pelos Industriais para lidar com algum problema dentro de cada Cidadela. E eles cuidavam desde o problema mais básico, como algum trabalhador que se cansou de fazer o básico de seu serviço, até problemas medianos, como alguma facção invadindo as fábricas, e, por fim, o maior problema que esses resolviam, os Amálgamas de Emoção.
Entrando no elevador, localizado perto de uma área gastronômica, ele podia sentir o cheiro podre de fritura e couro cabeludo, vindo de seu próprio cabelo e do homem de alta estatura à sua frente. Esse homem tinha um complexo maquinário sobre a cabeça, projetando-se pela região ocular até a boca, engolindo as bochechas de forma que parecia haver um pesado motor de carro no lugar dessas partes do rosto, que nem percebiam quando pisavam os pés.
Ele sentia nojo dessas coisas... Cyber-alienados era o nome daquele tipo de pessoa. Eram trabalhadores ou desempregados que faziam uma cirurgia caríssima o suficiente para gastar todas as suas economias e implantar de forma permanente e incurável um dispositivo dentro de seu crânio e, principalmente, de seu cérebro, fazendo eles verem nada além de um ambiente digitalizado que seria seu mundo de fantasias, durando o tempo que tinham até suas economias acabarem totalmente.
Subindo pelo elevador, ele pensou sobre aqueles Amálgamas de Emoção. Não era rotineiro encontrar-se com um, mas era rotineiro que dezenas, até centenas de pessoas fossem mortas por eles. Eles, assim como todos os cidadãos das Megalópoles, eram usuários do programa Eleos.com, um programa que tinha o poder de criptografar as informações neuroquímicas de todas as emoções passivamente e transmitir, por meio de hologramas, um cenário artificial que proporcionasse calma interior à pessoa que as sentia.
O problema era que o programa não era capaz de suportar as bilhões de informações de todos os usuários simultaneamente. Assim, quando os servidores se sobrecarregavam com os dados de uma emoção específica, eles automaticamente os despejavam no usuário que estivesse mais ativamente a sentindo naquele momento, para evitar uma implosão no sistema. Obviamente, a mente dessa pessoa quebrava ao receber todas essas conexões neurológicas, mas, principalmente, seu corpo.
Os nanorrobôs, que antes projetavam hologramas ambientais, agora emergem de dentro para fora do corpo, destruindo toda a estrutura biológica e substituindo-a por uma estrutura feita de um holograma agora totalmente físico e mortal. Esse ser poderia interagir com as pessoas, mas as pessoas não podiam interagir com ele, por ser feito de matéria metafísica. Criava-se uma entidade destrutiva, com uma aparência distante de um ser humanoide, um amálgama de objetos, luzes e hologramas que representavam a emoção despejada pelo programa, produzindo uma abominação da natureza, poderosa na mesma proporção que o número de usuários sentindo aquela emoção. Seu ponto fraco era o Núcleo, onde antes estava o chip que unificava os nanorrobôs.
As Milícias combatiam esses seres com Armas de Emoção, um dos poucos recursos capazes de enfrentar as abominações aterrorizantes conhecidas como Amálgamas de Emoção. Cada arma era única, construída para reagir e ser abastecida pela intensidade emocional de seu usuário, canalizando a energia de sentimentos como raiva, medo ou tristeza em ataques poderosos, que podiam se manifestar como projéteis ou golpes diretos. Esses equipamentos eram exclusivos dos cyborgs, soldados das Milícias que implantavam as armas em suas próteses militares para enfrentar os Amálgamas.
Para os trabalhadores comuns, o uso dessas armas era extremamente caro e limitado. Aqueles que conseguiam pagar podiam ativar temporariamente uma versão simplificada das armas nos corredores de defesa das Cidadelas, geralmente apenas em emergências. Essa ativação gerava uma experiência extenuante, pois exigia que o usuário alcançasse um estado emocional específico e intenso, o que, somado à ameaça de um Amálgama, muitas vezes empurrava o indivíduo ao limite da sanidade.
Essas armas eram essenciais no combate aos Amálgamas, pois eram as únicas capazes de interagir com manifestações metafísicas puras. As Armas de Emoção não apenas neutralizavam as criaturas, mas também funcionavam como um escudo emocional, reduzindo a carga mental e protegendo o usuário da influência devastadora dos sentimentos coletivos que transformaram pessoas comuns nessas abominações.
Subindo mais e mais pelo elevador, ele ia se encontrar com seu colega em seu cômodo. Seu colega, David, era outro Alvenário, um nome comum para outros de sua função. David era um homem robusto, diferente dele próprio, que era magro.
Tinha mãos e braços grossos, mas também partes gordas em seu corpo, e era baixo e careca, semelhante a um besouro. Seu pai também fora Alvenário, e, como tal, David servia na Cidadela desde a infância, presenciando amigos caírem dos andaimes em direção à escuridão sem fim, envoltos na névoa de pura poluição que tomava o ar. Muitas vezes, sofria crises de estresse, trabalhava dobrado e já foi flagrado chorando em posição fetal diversas vezes, uma conduta pela qual era punido pelas Milícias, acumulando cicatrizes e hematomas constantes.
David já tivera uma amada e supostas filhas, sobre as quais se recusava a falar normalmente, mas sempre mencionava durante suas crises. Como já não tinha mais ninguém para sustentar, gastava tudo em pílulas alimentícias, engordando-se, trabalhava até a fuligem e os óleos lubrificantes se impregnarem tanto em seu corpo que formavam uma nova camada sobre sua epiderme.
O Alvenário seguiu até o quarto dele, esperando encontrá-lo no mesmo estado de sempre, para aplicar uma potente dose de calmante intravenoso e impedir que se tornasse em um Amálgama. No entanto, ele se atrasou.
Quando encontrou David, ele estava em posição fetal, esparramado sobre uma mesa metálica, com as mãos cobrindo o rosto, os dedos sobre os olhos e os cotovelos encolhidos, em uma postura que revelava sua vergonha. Estava chorando.
“Não precisa aplicar essa dose em mim… já chega…” - o colega choramingou.
“David, levanta, temos que trabalhar”
“Sim, trabalhar… eu vou trabalhar… eu vou…”
“Levanta, Já estou atrasado, você sabe que vão descontar do meu salário se algo ocorrer com você”
“Eu sei… meu trabalho… m-meu… não vi… ela sufocou… não estive lá… minha filha… os ossos dela… m-meu amor… descontei no trabalho, descontei com comida… agora meu coração não está funcionando corretamente…. Vou ser considerado deficiente e vão me substituir… preciso trabalhar… ou não vai me sobrar nada! Sou uma máquina falha! Uma engrenagem enferrujada e um motor que não funciona! não me vai restar nada… não vai me restar nada…” - David gemeu em uma mistura de colapso nervoso, com a fala molhada por suas lágrimas misturando uma raiva incomensurável e uma tristeza inconsolável.
“Eu sei, você já me contou isso. Para de gritar, se você não levantar quem vai ser demitido será eu. Diferente de você, eu tenho alguém para sustentar. Levanta agora, por favor”
O Alvenário, com frieza, suplicou e aproximou-se dele, tentando aplicar a dose de calmante, se possível, contra a vontade do colega. No entanto, parou no meio do caminho, quando estava perigosamente perto. Percebeu algo estranho: as lágrimas dele… não eram de água, mas de óleo lubrificante. Sem entender, o Alvenário tirou as mãos que escondiam os olhos de David, revelando que ele já não tinha mais olhos, e sim pistões metálicos que se projetavam com tanta força que o lançaram para trás. Esses pistões moviam-se a uma velocidade impressionante e pareciam crescer cada vez mais, com um maquinário pneumático cada vez mais invadindo a região ocular.
De repente, a cabeça careca de David se irrompeu em uma explosão de dentro para fora, revelando uma densa camada metálica e eletrônica como uma bateria pulsante, que se expandiu e lançou fragmentos de seu crânio e a gordura do cérebro para diferentes partes do teto do quarto.
O motor que emergirá de sua cabeça consumia cada vez mais sua estrutura facial, enquanto expulsava ou absorvia as partes internas para dentro de seu núcleo, o mesmo lugar onde antes ficava o chip que unificava os nanorrobôs do sistema Eleos. Como uma lanterna, seu núcleo emanava uma luz fortíssima e escura, oriunda dos hologramas, iluminando tanto o interior quanto o exterior de seu corpo. Eram os hologramas dos nanorrobôs manifestando toda aquela emoção coletiva de dentro para fora do corpo de David, irrompendo e, lentamente, expulsando ou assimilando as partes remanescentes de sua antiga forma.
Suas veias se rasgavam de dentro para fora, transformando-se em grossos cabos e fios elétricos que se agarravam aos móveis e paredes do condomínio, assimilando mais metal para seu corpo, arrancando estruturas metálicas e crescendo exponencialmente. À medida que se expandia, mais partes metálicas e distorcidas irrompiam de dentro para fora de seu corpo. Chegava a um ponto em que o motor ao redor do núcleo se tornava tão pesado que esmagava completamente sua cabeça, tornando-se desproporcionalmente enorme e maciço em relação ao resto do corpo, que ainda não completara a transformação total no Amálgama de Emoção. Os cabos e fios, antes veias e nervos, fixavam-se nas extremidades do teto para sustentar o corpo, erguendo-o do chão com tanta força que o desequilíbrio de peso quebrou-lhe o pescoço, virando sua cabeça para o lado em um ângulo de 75°, numa posição que lembrava um homem enforcado.
O Alvenário suspirou enquanto se afastava, recuperando-se do súbito golpe provocado pelos pistões pneumáticos que saíam dos olhos de David. Curvou-se, com as mãos em sua bochecha, que sangrava e danificou parcialmente sua máscara, enquanto resmungava.
“De Novo!”
Rolou para se esquivar dos avanços dos cabos, enquanto realizava o procedimento padrão de injetar o calmante em seu pulso, não podia correr o risco de se tornar um Amálgama de Pânico ou Dor naquela ocasião, ou também seria morto pela milícia. Pensando nisso, correu rapidamente até o corredor. Com tempo suficiente, conseguiu ativar o alarme que estava ali para avisar que um Amálgama de Emoção havia surgido.
“Atenção! Alerta de amálgama! Pegue o seu pagamento e vá até o andar 109-B da Seção 5! Repito, Alerta de Amálgama!” - urrou o alarme, enquanto o Alvenário corria até o fim do corredor, para pegar uma das armas de emoção para auto defesa.
Sendo interceptado pelo braço mecânico de David, agora o Amálgama do Burnout, que se expandia em uma estrutura semelhante a várias seções de ganchos de guindaste, arrastava aqueles enormes objetos em direção ao Alvenário, atravessando as paredes e perfurando-as, executando um esquartejamento em quem estava nos quartos opostos. Ao mesmo tempo, absorvia o metal dos condôminos para realizar um golpe devastador contra o Alvenário. Contudo, ele foi rápido o suficiente para pagar pelo uso da arma de Emoção e disparar um projétil em formato de engrenagem contra o ombro daquela criatura, atrasando e redirecionando o movimento dos ganchos, que acabaram cortando sua falange do pé e causando um profundo corte em seu abdômen.
Ele conseguiu rastejar até o elevador e, com a adrenalina pulsando, levantou-se, usando toda a força de seus braços metálicos magnéticos para se prender à parede do elevador, ativando e fechando as portas para escapar. Mas não antes de ver a mesma luz cinza dos hologramas cobrindo o braço direito robótico de David, irrompendo violentamente, fazendo com que seus ossos, a única parte orgânica que ainda permanecia dentro daquele modelo ultrapassado de braço biônico, se substituíssem por uma longa corrente que saía de dentro para fora, acompanhada pela mesma luz holográfica cinza. O mesmo processo ocorria com sua mão, que agora se tornava uma bola demolidora. Por sorte, o elevador subiu antes que ele fosse atingido completamente.
Como a estrutura era absurdamente gigantesca, os elevadores eram igualmente rápidos. Gemendo de dor, ele pressionava a mão contra o ferimento, tentando estancá-lo com suas próteses braçais, que apertavam o agasalho que havia vestido anteriormente, absorvendo o sangue e impedindo-o de desmaiar. Seus pés, sem muita opção, apenas agonizavam enquanto ele esperava descer para um dos cômodos onde ficavam os Tecno-Médicos, que podiam fornecer as próteses para substituir as partes perdidas. Claro, os filhos da puta sempre cobravam mais quando as pessoas estavam desesperadas após perder um membro. E, com o preço mais alto, ele sabia que não teria como comprar o aluguel de seu Neocortiço pela semana.
“Atenção. Milícia entrando no elevador, permaneça calmo. Aborde seus pertences sem apresentar ameaça e saia do recinto lentamente sem movimentos bruscos.”
Ele insultou em silêncio enquanto segurava o pé, numa tentativa falha de estancar o sangramento. Lembrou-se de quando estudava com o que restava da herança de seus familiares em uma decrépita Escola Positivista, onde gente do tipo dele só foi aceito graças a uma doação que apenas os Alvenários da camada do Produtoriado poderiam pagar por uma breve estadia. E, nesse breve momento, ele estudou sobre a Lei de Murphy.
“Se algo pode dar errado, dará.”
Odiava tanto aquela maldita lei. Amava aquele maldito oficial que a inventou tanto quanto amava o programador que criou o sistema de Eleos. Por um lado, ainda estava naquela situação por culpa dela, por outro, ele havia ido de programador, a camada mais baixa da Intelligentsia, para magnata! Esse era o mantra que seguia. Trabalhava para um dia se tornar um Industrial. Ele tinha fé de que conseguiria chegar até lá se sobrevivesse mais um dia.
Enquanto sua visão começava a se escurecer devido à hemorragia, o elevador subitamente parou. O grupo da Milícia entrou no recinto, os Cyborgs, cada um com uma estrutura única de armaduras e armas de Emoção, observaram o Alvenário, que pateticamente usava a pouca força que lhe restava para segurar a canela de um deles, suplicando por sua vida. Toda vez ele tentava suplicar algum tipo de arrego. Era a quinta vez, mas ele sempre soube que havia impostos a serem pagos para a Milícia protegê-lo, senão, mandariam ele se encontrar novamente com o Amálgama.
Um dos Cyborgs era um homem esguio e alto, com uma máscara de oxigênio cobrindo completamente o rosto. Suas pernas eram metálicas, e um complexo maquinário se estendia até a pélvis, se dobrando em uma coleção de braços e apêndices de aço que saíam de sua coluna. Esses apêndices brilhavam em um intenso vermelho neon, servindo como suas armas de emoção. Foi a este que o Alvenário se agarrou, suplicando por misericórdia, mas recebeu um chute contra a mão, repleto de nojo.
“Merda! Já não basta os Magnas não oferecerem o básico para uma refeição decente, e depois nos enfiar para salvar aqueles viciados asquerosos de Eleos, agora a gente ainda tem que carregar essas tralhas que não valem um centavo nas costas sempre. Eu já to furioso com isso. Eu poderia muito bem acabar com a sua raça aqui e agora, porque por mais que sejam os Tecnocratas os que fazem as leis aqui, somos NÓS que as mantemos funcionando, mas a Cyber arrancaria do meu salário por danificar uma propriedade da empresa.”
“T-Tudo bem… a senha da minha conta nessa Cidadela é AL-35476, pode retirar a quantidade que desejar, só me deixa viver, por favor.”
A quantidade de créditos que o Alvenário tinha não era suficiente para cobrir o imposto que a Milícia cobrava por salvamento. Eles o consideraram barato demais para desperdiçar tempo ou munição, então simplesmente esperaram o Amálgama descer, enquanto se preparavam para o ataque.
Não foram rápidos o suficiente para reagir à bola de demolição que se aproximava, quebrando o elevador em direção ao andar deles. Aquela bola de aço puro, envolta pela luz cinza holográfica do Amálgama, era um sinal de que ele havia crescido muito naquele breve período de tempo. Quando aquele massivo objeto desceu até eles, tudo ficou escuro.
…
O Alvenário acordou tonto. Estava soterrado em cima de ruínas que sobraram após a luta da Milícia contra o Amálgama. Foi uma luta brutal, três andares eram equivalentes a um bairro de uma cidade grande. Ele andou mancando, saindo com dificuldade sobre as dezenas de corpos jogados entre os destroços. Seus óculos, que o protegiam das luzes neon em seu trabalho, haviam sido ou furtados ou quebrados. Sua cabeça não parava de sangrar pelo nariz e pelos ouvidos. Ele estava pelo menos banguela de três dentes frontais, não que os usasse para alguma coisa. Pelo menos, sua máscara aguentou parcialmente o impacto. Tossiu vinte vezes logo em seguida. Um de seus braços metálicos estava destruído e pingava sangue de seu ombro, que era orgânico.
Caminhou mancando, encontrou até mesmo os corpos dos Cyborgs. Aquela batalha foi realmente feroz, mas também encontrou os corpos de pessoas e dos próprios combatentes presos ao maquinário que se tornara David em sua transformação como Amálgama. Ele podia ver que os cabos eram alimentados com sangue, e era possível observar braços e dedos presos dentro daquele Amálgama. Com seu corpo tão colossal, o Alvenário parecia do tamanho de um rato em comparação a ele. Via pele e fibras musculares esticadas até o ponto de parecerem um trapo feito de couro, cobrindo de forma precária partes daquela criatura. Essas partes estampavam olhos e bocas, talvez ainda conscientes.
“Aquela milícia devia ser nova” - pensou, como alguém que já havia encontrado Amálgamas antes.
Ele sabia que eles ficavam mais fortes quanto mais tempo tinham, pois as conexões eram constantemente alimentadas pelo servidor do Eleos e direcionadas diretamente ao Amálgama, que era a forma naquele momento que o sistema encontrava de se livrar daquelas informações.
Ele caminhou com sua arma de autodefesa até encontrar um gigantesco amontoado de corpos e maquinários, com algo que era do tamanho de um reator nuclear, com cabos espalhados por todos os lados naquela estrutura quadrática e disforme. Esse era o núcleo do Amálgama. O Alvenário aproximou-se e apontou para o centro daquele núcleo. Em volta dos corpos que formavam a estrutura quadrática, ele notou que eram os mesmos corpos de sua mulher e sua filha.
O núcleo era o rosto de David, exibindo um sorriso distorcido e esticado como a tromba de uma máscara de gás. O Alvenário lembrou-se da morte da amada de David e percebeu que o rosto dela e o da filha compunham cada lado de seu rosto. Agora, todos estampavam um sorriso distorcido, com bocas derretidas. No lugar da testa de David, um chip, agora tão grande quanto seu antigo cérebro e retangular, estava conectado ao mesmo por veias que se estendiam em cabos sangrentos, os nanorrobôs, que brilhavam em vermelho em intervalos de milissegundos. O Alvenário apontou a arma para aquele Amálgama já derrotado pela milícia e começou a falar.
“Eu trabalho nesta Cidadela desde a infância, sabe? Conheci uma bela alvenaria um dia, mas ela tinha asma. Ralei e ralei para pagar o tratamento dela. Mas o oxigênio encareceu, e ela sufocou até a morte em meus braços. Nossa filha descontou no trabalho, puxou o pai. Como não tinha dinheiro para pagar próteses para ela, seus ossos cederam, e ela morreu de exaustão no meio do serviço. Tudo aconteceu porque eu estava trabalhando e não podia vê-las. Todas as dívidas delas caíram sobre mim. Mas você já sabe disso tudo... Você já sabe…” - David soluçou enquanto seu corpo se virava até o Alvenário.
O Alvenário sabia que ele estava além de qualquer salvação. O processo era permanente, tanto mental quanto físico. Ele sentia aquela emoção por todas as pessoas daquela Megalópole que também a estavam sentindo ativamente naquele momento. Era informação demais para o seu cérebro suportar, ele não podia sentir nada além do constante sofrimento que atormentava sua mente. Fisicamente, ele nunca mais seria humano, o processo era irreversível. O Alvenário apontou a arma para o Amálgama e disparou.
“Descanse um pouco, David.”
…
Timidamente, caminhou entre os reconstrutores. Já não tinha mais dinheiro para pagar as cirurgias, então os Tecno-Médicos que estavam no local nem o olhavam nos olhos. Apenas aplicou uma poderosa dose de endorfina alucinógena em seu corpo, que já tinha em seu estoque de drogas. Tocou sua playlist de músicas para esquecer de tudo aquilo e se afastou do mundo com sua manifestação de emoção. Sua maior preocupação era que estava muito atrasado para o trabalho.
…
Subiu a construção, com a esperança de que um dia seria tão poderoso quanto um Industrial.
…
Lembrou dos dias de criança em que fora espancado na mesma Cidadela em que estava, na mesma plataforma em que trabalhava.
…
Martelou com força os parafusos daquele impetuoso guindaste.
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Lembrou de sua amada e de seu suposto filho. Continuaria a mantê-la viva, mesmo que morresse de fome.
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Lembrou de David… esse era mesmo o seu nome?
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Pensou em como estava com sorte por ter sobrevivido até ali. Mesmo com pelos e barba grisalha, ainda tinha seus 25 anos. Ainda conseguiria trabalhar o suficiente para se tornar um Industrial… um dia.
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Seus olhos embotados de lágrimas e fuligem acabavam ofuscados pelas luzes neon que foram ativadas enquanto martelava. Não tinha proteção, pois perdera seus óculos. Tentou se segurar com seu braço metálico magnético, mas sua prótese era barata demais. Não sustentou seu peso e cedeu. A plataforma não tinha proteção para “cortar custos”.
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Despencou daquela plataforma e caiu na escuridão profunda, naquela interminável neblina de fumaça pura, como se caísse em um abismo sem fundo. Tornou-se um ponto preto em queda livre ao lado da brilhante Cidadela.
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Tornando-se parte da rotina, espatifou-se contra o chão à frente da Cidadela, atrapalhando o público.