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LUPINOTURNO

VOL.1 — O Despertar

• Capitulo 1 — O Corpo que Não Dorme.

Dizem que a licantropia é herdada, que corre no sangue como uma linhagem silenciosa, dormindo em algum canto do corpo até ser acordada. Mas ninguém te prepara pra hora em que ela desperta, e, se disserem, estão mentindo.

Não existe manual pra quando o mundo racha no meio e seu corpo resolve seguir um caminho que sua mente ainda não conhece.

Não existe um antes e depois definido.

Só um durante.

Um cair de noite em que o tempo dobra, os ossos gritam e a cidade inteira parece exalar o som do seu nome, mesmo que ninguém saiba quem você é.

A primeira vez que aconteceu, eu tinha dezoito. Estava voltando do cursinho, o Largo do Machado já meio vazio, o último ônibus meio lotado de gente cochilando. A cabeça latejava, os olhos ardiam. Era como se alguma coisa estivesse presa dentro de mim, crescendo, pressionando tudo o que eu achava que era meu.

A dor não veio como uma explosão. Veio como um acúmulo: os sons se ampliando, o cheiro de graxa e mofo se tornando insuportável, o toque do próprio casaco no braço parecendo errado. Até que, num beco entre duas casas, o corpo cedeu.

Não teve glamour. Não teve lua cheia redonda e brilhante no céu. Teve sangue na garganta, urina nas calças, roupas que depois foram costuradas e o pânico de não saber se ainda era humano. Teve a sensação de que o ar estava tentando me devorar por dentro, como se cada respiração fosse um rasgo. E teve o momento em que deixei de pensar. Passei a sentir. O som da cidade ficou mais nítido do que qualquer pensamento. A cidade pulsava. Eu pulsava com ela.

Meu corpo se esticava em direções impossíveis. Os dedos se fundiam e se dividiam de novo. Os dentes pareciam crescer dentro da gengiva como lâminas querendo escapar. A dor era tanta que quase me fazia rir. Rir de desespero, de nervo estourado, da ironia, de entender finalmente o que significava estar vivo e, ao mesmo tempo, não querer mais estar. Quando terminou, eu não era mais o que um dia fui.

E também não era o que seria depois. Era um meio-termo, um bicho com consciência. Um homem deformado com os olhos de algo mais antigo do que qualquer coisa que se possa nomear. E, mesmo sem espelho, eu sabia: meus olhos não eram mais meus.

Corri. Não sabia pra onde, só sabia que precisava. Que o asfalto chamava e o vento me guiava. Atravessei ruas como se fosse parte delas. Rasguei sacolas de lixo com garras que não existiam na tarde anterior. Roubei uma galinha de um quintal, e o gosto do sangue fresco me trouxe uma paz que nenhuma terapia, remédio ou reza jamais ofereceu. Não era só fome. Era instinto. Era algo mais fundo que a barriga: era alma.

E depois, como se fosse um castigo por existir, veio o sol. A luz me puxando de volta pra carne conhecida. A forma humana me arrastando de volta à prisão da rotina. Acordei na cama. Nu, sujo, com dores em lugares que nem sabia que existiam. O colchão molhado de suor e outros fluidos, a janela aberta. Meus dedos tremiam, mas eram meus. Ou pareciam ser. Olhei o reflexo no vidro — e não reconheci quem estava lá. Era eu, mas não era... Eu.

Desde então, todas as noites carregam essa promessa suja. Essa ameaça velada. Transformar-se e não conseguir voltar. Ou pior: voltar, mas trazer algo do bicho junto. Um cheiro que não sai. Um olhar que não desvia. Um medo que nunca dorme.

A cidade tenta seguir normalmente. Faz de conta que está tudo bem. Que a licantropia é só uma condição — como miopia ou alergia a camarão. Basta registrar na prefeitura, fazer os exames de controle, tomar as vitaminas que “ajudam a amenizar os efeitos colaterais”. Como se fosse simples assim.

Hoje é domingo. Os domingos têm gosto de vácuo. São lentos, preguiçosos, como se a cidade estivesse se arrastando pela própria pele. É quando vou até o Café Chifre Espiral, em Santa Teresa. Um lugar estranho. Acolhedor demais pra ser verdade, mas velho o bastante pra ninguém desconfiar.

Subo as ladeiras sentindo o cheiro do diesel dos bondes que quase não passam mais. Os paralelepípedos fazem os tornozelos reclamarem, mas é melhor do que o asfalto duro lá embaixo. Aqui o tempo parece ter tropeçado e ficado.

O café é um daqueles lugares onde todo mundo parece estar esperando alguma coisa. Uma carta. Um telefonema. Uma vida que nunca chegou. E é lá que ela trabalha. A garota do balcão.

Não sei o nome. Nunca perguntei. Não quero criar pontes que eu não consiga atravessar depois. Mas ela me reconhece. Sabe meu pedido. Nunca tenta puxar conversa além do que o silêncio permite. Nunca finge que não estou ali.

— O de sempre? — pergunta, com uma leveza que me deixa desconcertado.

— É... — murmuro, tentando parecer menos dilacerado do que estou.

— Você tá com olheiras de quem não dorme faz dias.

— É o tempo. Mudou.

Ela me encara com olhos que parecem mais antigos do que o próprio bairro.

— Mudou para todos?

A pergunta fica suspensa entre a xícara e o ar.

Lá fora, um garoto-raposa passa. Metade bicho, metade menino. Ninguém repara. Um senhor atravessa a rua com pressa. Uma mulher finge olhar o celular. O mundo segue.

— Teve mais um ataque na Glória ontem. — ela comenta, como quem fala do clima. — Disseram que era um licantropo.

— Disseram. — repito, seco.

— Sempre dizem, né?

Silêncio. O rádio antigo toca alguma coisa instrumental, com chiados no meio. Ela me entrega o café sem pressa. O gesto é simples, mas me segura por dentro.

— Você acha que eles escolhem isso? — pergunto, quase num sussurro.

Ela pensa. Ou finge que pensa. Depois responde:

— Acho que tem coisas que escolhem a gente. Depois a gente escolhe o que fazer com isso.

Eu rio. Um riso amargo, de quem já escolheu demais e não sabe mais o que está escolhendo.

— Bonito. Mas às vezes não há escolhas.

Ela não diz nada. E talvez seja isso que eu precisava.

Ficamos ali. Café esfriando na minha mão. O cheiro de canela flutuando pelo salão. E a sensação de que algo está para acontecer. Sempre está. A cidade tem essa mania de prometer caos sem data.

E então a noite cai. E o mundo muda de novo ao meu lado.

Foi instinto. Só isso. Não fome, não raiva. Só uma coisa crua e impossível de explicar. Um desejo de sentir o sangue quente entre os dentes, de ouvir o bater desesperado de asas contra o vento noturno. O galinheiro tinha cheiro de medo. Um medo velho, impregnado nas tábuas úmidas, nos fios de arame enferrujados, como se todas aquelas aves já soubessem — mesmo sem saber — que uma noite assim sempre chegaria.

As penas voaram antes que eu me desse conta. Uma cacofonia de cacarejos e guinchos engasgados em choque. E no meio disso, eu me vi parado. Um instante só. Um segundo entre o ataque e a ação. Como se algo dentro de mim gritasse para que eu parasse. Para que eu me lembrasse de quem eu era. Mas o corpo... o corpo não lembrava.

Os dentes se cravaram sem cerimônia. A pele se rompeu fácil, como papel molhado. Era um gosto estranho. Ferroso. Amargo. Quente. Era horrível. Era bom. Era tudo ao mesmo tempo. E logo depois disso, o silêncio. A galinha morta, caída entre minhas patas. A respiração ofegante. A lua escondida atrás de nuvens sujas.

E eu ali, naquele momento. Um lobo, arfando, cercado de penas e lembranças que ainda não tinham virado culpa. Porque, naquele instante, culpa e consciência eram conceitos distantes. A cidade parecia dormir. Só eu estava acordado. Só eu era real.

Mas a realidade cobra. Sempre. E aquela noite, tão escura quanto febril, decidiu cobrar cedo.

Ouvi o portão se abrir com um estalo metálico, seco como um veredicto. Passos arrastados avançaram pela terra batida. Era um homem — talvez um vigia, talvez só um curioso puxado pelo cheiro de morte no ar. Vestia um casaco velho, com faroletes pendendo do pescoço, os olhos semicerrados pela dúvida ou pelo cansaço de viver noites demais.

Ele não gritou. Apenas me olhou. Ficou ali, congelado, com a respiração presa e a mente tentando costurar uma explicação que não existia. Era como se seu cérebro rejeitasse a imagem que os olhos transmitiam. Uma criatura onde não devia haver nada. Uma presença que feria a lógica.

Eu devia ter fugido. Meu coração — ou o que sobrou dele — até gritou isso. Mas havia algo mais forte.

Um impulso antigo.

Algo que nasceu junto com a primeira sombra.

Eu o encarei de volta. E naquele instante, não havia linguagem entre nós. Só o cheiro de medo e de sangue no ar. Ele deu meio passo pra trás, mas foi tarde demais.

Eu saltei.

O corte foi limpo, fundo, certeiro — tão rápido que por um segundo ele nem percebeu. Mas então veio o jorro, quente e pulsante, um rio carmesim nascido de dentro, escapando com força pelas margens abertas do pescoço.

Ele levou as mãos à ferida como se pudesse fechar o inevitável com os dedos trêmulos, mas tudo o que conseguiu foi sujar-se mais, pintar-se com a própria morte. O sangue subia pela traqueia como um refluxo perverso, invadindo a garganta, escorrendo para dentro da boca, inundando os pulmões. Ele tentou respirar, tossir, gritar — qualquer coisa — mas cada tentativa apenas puxava mais líquido para dentro, como se o próprio corpo o estivesse afogando por dentro, traindo-o.

Os olhos ficaram arregalados, vermelhos nas bordas, as pupilas dilatadas pela luta por ar. O som molhado de uma tentativa de um pedido de misericórdia saia tanto da ferida quanto de sua boca. Caiu de joelhos, depois de lado, convulsionando, engasgando com a espuma vermelha que brotava dos lábios. E então, no silêncio abafado de um mundo submerso em sangue, veio o último suspiro: um sopro fraco, úmido, perdido no gorgolejo de uma garganta que não era mais garganta — apenas escoadouro.

O silêncio que veio depois não era o da culpa. Era o da saciedade.

A carne era quente, viva. O sangue, metálico e amargo, pintava minha boca e escorria pelo queixo como se marcasse meu retorno a algo esquecido. Não houve prazer. Nem fome verdadeira. Só necessidade. Mas mesmo isso era mentira.

Eu mastigava como quem tenta acordar de um sonho sujo, dentes atravessando músculos ainda pulsantes mesmo após a morte, os estalos dos tendões rompendo no meu ouvido como fogos de artifício ao contrário. Cada pedaço que rasgava sob minhas presas trazia um lampejo de lucidez — uma frase do meu pai sobre decência, o olhar de repulsa da moça do café quando falava de crime, a lembrança de um espelho que quebrei porque já não reconhecia o que via.

Mas tudo isso passava como vultos. E eu seguia, devorando. Dizia a mim mesmo que era defesa.

Que era sobrevivência.

Que ele teria me denunciado.

Que não havia escolha.

E enquanto os lábios esfarrapados cediam sob minha língua, e a traqueia rangia como bambu seco, eu repetia essas mentiras como orações. Como se cada mordida fosse uma confissão invertida — pecar para tentar se perdoar.

E mesmo com os dedos sujos de carne, mesmo com os olhos sem vida vidrados nos meus, uma parte de mim gritava de dentro: isso não é você. Mas talvez fosse. Talvez sempre tivesse sido. Talvez eu só estivesse, enfim, tirando a máscara. E ela tivesse gosto de sangue.

Quando a lucidez voltou, eu já estava longe. Com gosto de homem ainda na boca, correndo por ruelas como se o pecado me empurrasse.

Ninguém viu. Ninguém saberia.

Mas eu sabia.

E Santa Teresa... Santa Teresa sempre lembra.

Essa primeira vez sempre ficará marcada na minha mente. Já se passavam anos, mas ainda sinto que as sombras poderão me alcançar.

Voltei pra casa antes do sol. Me joguei no chão do quarto. Tremia. As mãos voltando devagar, os dedos latejando, as unhas curtas de novo. A respiração já era a minha. Mas o corpo inteiro doía. Cada osso parecia me lembrar de tudo o que ele teve que ser naquelas horas de escuridão.

E então veio a culpa.

Ela é lenta. Vem depois do instinto. Depois da fuga. Depois da transformação. Ela chega devagar, como fumaça. Se infiltra nas frestas da alma. E, de repente, você está ali, nu, sujo, cansado, deitado no chão frio do próprio quarto, tentando lembrar qual era a última vez em que se sentiu humano de verdade.

O cheiro do galinheiro não saía do meu nariz. Fechei os olhos. Vi o homem parado, me olhando. Vi a galinha entre as patas. Vi a cidade toda virando o rosto, como sempre faz.

Foi um saco dormir após lembrar de toda essa coisa novamente. Fiquei com o estômago embrulhado e com uma vontade séria de não sair. De não fazer nada. Meus pesadelos infelizmente são incrivelmente bons em me lembrar em altos detalhes essas coisas que odeio lembrar.

E, mesmo assim, na manhã seguinte, fui de novo ao Café Chifre Espiral. Com os olhos fundos, os passos arrastados. A garota do balcão olhou pra mim daquele jeito que não pergunta, mas sabe. E, ainda assim, sorriu.

— Hoje parece que o tempo vai virar — disse ela, colocando meu café na xícara de sempre. Só que dessa vez colocou uma fatia de bolo em um pequeno pires como se fosse me animar. E até que animou.

— O tempo sempre vira. A gente é que nunca sabe pra onde. — Eu disse.

— Você tá mais... quieto.

— E quando não estou?

— É diferente. Hoje tá mais fundo. Tipo silêncio de cemitério. Alguém morreu?

Ela riu. Eu ri, fraco. Um som sem gosto. Levei a xícara aos lábios. O gosto do café veio como uma âncora. Denso, amargo, familiar.

— Você acredita que tem volta? — perguntei, encarando o líquido escuro.

— Volta pra onde?

— Pra antes. Antes de mudar. Antes de ser o que se é.

— Não sei. Acho que a gente só vai. Não tem mais antes depois de um certo ponto. Mas é meio difícil, sabe?

Fiquei em silêncio. Ela me olhou por alguns segundos. Depois foi atender outro cliente. Um casal de turistas com olhos arregalados e câmera pendurada no pescoço. Eles falavam inglês rápido, apontando para o cardápio como se estivessem num zoológico. Eu bebi o café todo e comi o bolo. Queria queimar a garganta. Queria alguma dor que me lembrasse que ainda tinha controle sobre algo.

Do lado de fora, a cidade continuava. Motores roncando, passos apressados, pombos disputando espaço com sacolas plásticas. Mas havia algo no ar. Uma tensão. Como se as paredes respirassem diferente. Como se os postes soubessem demais.

Voltei a olhar pra ela. A garota. A humana. Ou talvez não. Vai saber. Nunca se sabe. Às vezes, eles também não sabem. A transformação pode estar adormecida, esperando a primeira vez. Esperando o momento certo. Um estopim. Um trauma. Santa Teresa é cheia desses casos.

Às vezes, eu imagino ela correndo comigo pela cidade. Em forma feral. Livre. Rápida. Os olhos brilhando. O pelo pegando a luz dos postes. Mas, quando volto a mim, ela ainda tá ali, atrás do balcão, empilhando pires, limpando manchas de café.

Eu não sei se quero que ela mude. Talvez eu só queira que ela continue intacta. Que ela seja um lugar seguro, mesmo que nunca saiba disso. Mesmo que nunca me veja por inteiro. Mesmo que nunca me ame. Mesmo que nem saiba meu nome.

Já faz tempo que não espero amor. Só não quero mais ser o monstro.

Mas a noite vem. E com ela, eu sei.

Vou correr de novo.

Vou me perder.

E não sei se volto.

Porque ninguém nasce lobo. Mas, quando vira, não volta a ser só gente. Nunca mais.

• Capitulo 2 — O Peso do silêncio.

Às vezes me pego desejando a completa ausência de pensamento. Não da morte — isso seria melodrama demais —, mas a extinção lenta e silenciosa de qualquer forma de consciência. Um sumiço brando daquilo que me faz ser eu. Não é tristeza exatamente. Nem raiva. É um cansaço profundo, quase espiritual, como se viver com essa clareza toda fosse um erro de projeto.

Eu queria ser uma coisa pequena e ignorante. Um inseto na parede úmida de um banheiro público, rastejando entre azulejos rachados. Queria não saber de onde venho, não saber pra onde vou, não me importar com nada disso. Só existir. Comer quando tiver fome. Fugir quando sentir perigo. Morrer sem entender o que significa ser.

Acontece sempre em dias bonitos. Céus absurdamente limpos, com aquele azul chapado que parece mentira. O tipo de céu que devia ser um presente, mas só serve para lembrar que algo ruim está vindo. Como se o mundo respirasse fundo antes de um golpe. Nesses dias, o corpo pesa mais. A mente tropeça em si. E qualquer pequeno gesto parece grande demais.

Lembrei de um pacote de torresmo esquecido sobre a mesa da cozinha. Abri com os dentes, numa pressa irracional, só para ter algo para mastigar enquanto procurava minha jaqueta. A textura seca, o sal exagerado, tudo era familiar o bastante para me manter no lugar.

Nunca fui bom de panela, mas aprendi que comer qualquer coisa é melhor que sentir o vazio roncando. O buraco dentro de mim não se fecha com comida, mas às vezes ele se distrai.

Tranquei a porta com duas voltas de chave. Dei play em uma playlist velha, e a voz de Chico Buarque escorreu pelos fones, entre violões e desalento. Desci a ladeira da Monte Alegre sem rumo. Senti os paralelepípedos rangerem sob meus tênis gastos.

Um senhor me cumprimentou com um gesto de queixo — seu Juvenal, sempre com a mesma camisa xadrez e o mesmo bom-dia murcho. Retribuí com um aceno automático. Ele me chamou de "Serrano", como sempre. O apelido colou mais do que meu nome. Ainda não sei por quê.

Peguei o BRT sem destino. O ar-condicionado soprava um frio impessoal, úmido de gente. Encostei a cabeça na janela. Do lado de fora, a cidade escorria: prédios, postes, pixações, feiras desmontadas, vendedores empilhando restos de fruta num canto da calçada.

Puxei o celular, não pra me distrair, mas pra fingir que existia uma outra vida, uma outra narrativa onde eu era só um observador. Quase sem querer, abri o aplicativo de notícias. A manchete estava lá, seca, violenta:

"Jovem feral morto após desentendimento com colega de trabalho no centro. Polícia trata como legítima defesa."

Li uma, duas, três vezes. O coração não acelerou. O estômago não virou. Mas senti um peso no meio do peito, como se o pulmão recusasse o próximo ar. Vinte e um anos. Estudante de Letras. Pantera. Não se transformou. Não ameaçou. Só existiu. E isso bastou.

O agressor disse que se sentiu ameaçado pela "energia" do rapaz. Alegou que foi "preventivo". O absurdo disso me atingiu como uma piada mal contada. Como se a simples presença de um corpo como o nosso justificasse tudo. Como se qualquer um que exalasse esse cheiro, esse sangue, esse traço... já estivesse pedindo pra morrer.

Fechei o aplicativo e vi meu reflexo no vidro. Por um segundo, juro que não era eu. Ou era, mas de um jeito que evitava encarar. As feições pareciam mais duras. Os olhos mais fundos. Como se a notícia tivesse revelado um pedaço que eu tentava manter escondido. A lua, mesmo invisível no céu claro, parecia se insinuar por trás das nuvens altas. Tive a estranha sensação de que algo em mim se movia. Algo que não era totalmente humano. Algo que latejava com raiva quieta, dor antiga. Aquele lobo-guará não aguentava essa raiva dos outros.

Desci no centro. A cidade cheirava a suor e escapamento. Fui até o lugar da notícia. Uma fita amarela cercava a calçada em frente a uma padaria. O sangue seco já estava coberto por um pó branco — provavelmente cal. Jornalistas falavam alto, tentando arrancar frases dos policiais. Os curiosos se acumulavam atrás das grades. Observei à distância. Era ali. Bem ali. Um lugar comum, onde alguém comum tinha sido apagado como se nunca tivesse existido.

Do outro lado da rua, notei uma figura familiar. Careca, terno escuro, óculos delicados demais pra sua cara de pugilista e de sua alma ursídea: Chico Carlos. Ele me viu. Acenou com aquele gesto sutil, calculado. Eu não consegui ignorar. Atravessei.

— Serrano. Quanto tempo! Veio cobrir a tragédia ou só passear pelo inferno midiático?

— Ultimamente, tem dado no mesmo — respondi.

Ele sorriu com o canto da boca, mas os olhos estavam vazios. Sem ironia. Sem prazer. Só um cansaço cúmplice.

— O menino tava limpo. Boletim exemplar. Sem ficha. Mas bastou estar lá. Bastou ser quem era. E pronto. A desculpa caiu do céu.

— Você veio por quê? — perguntei.

— Porque corpos como o nosso caem diferente. E eu gosto de saber quem os derruba.

Ficamos em silêncio. A cidade respirava como um animal ferido. Os carros passavam lentos, como se sentissem vergonha de atravessar aquela rua.

— Cuidado por onde pisa, Serrano. A cidade anda escolhendo quem vai ser o próximo.

Me afastei. Fui até a praça. Me sentei num banco de pedra. Vi a lua surgir — quase imperceptível, pálida, mas lá. Mesmo sem dentes à mostra, ela nos observava. Fechei os olhos. Senti a transformação rondar. Mas era cedo. Ou talvez, tarde demais.

As luzes da rua piscavam como se estivessem cansadas. Cada poste parecia lutar contra a escuridão, mas acabava engolido por ela no fim. Carros passavam como vultos, seus faróis cortando o ar denso com indiferença. Algumas vozes ecoavam ao longe, vindas de uma esquina onde a madrugada ainda parecia acordada. Risadas sem alegria. Gritos abafados. Passos que se apressavam. Tudo era muito e, ao mesmo tempo, nada.

Fiquei ali sentado, o banco frio contra minha pele, sentindo o coração bater fora do ritmo, como se soubesse o que estava por vir. Havia uma inquietação difícil de nomear — como quando a gente sonha com algo que esquece logo depois, mas a sensação fica. O corpo reconhece o que a mente não consegue alcançar. A noite me tocava com dedos invisíveis. Sussurrava em silêncio. Esperava.

Pensei em ir embora. Pensei em ligar pra alguém. Pensei em rezar, mesmo sem saber mais como. Mas não fiz nada. Só fiquei. Às vezes, o mais honesto que a gente consegue ser é permanecer imóvel. Aceitar que não se tem resposta. Nem pergunta. Nem controle. A cidade me cercava como um animal ferido: rosnava baixa, escondia os dentes, mas eu sabia que podia morder a qualquer momento. E talvez eu deixasse.

A lua subia devagar, um olho morto no céu preto. Ela não brilhava — só estava ali, cinzenta, alheia. Mas havia algo de íntimo na maneira como pairava. Como se soubesse de tudo. Como se tivesse assistido cada erro, cada desvio. O mundo parecia suspenso por um fio prestes a arrebentar. Eu sentia a vibração nos ossos, nas veias, na base do crânio. E ainda assim, nada acontecia. Nenhuma mudança visível. Só a espera.

Meu corpo parecia carregado de estática. Os músculos tensos, o sangue sussurrando. Mas era como segurar um grito na garganta. Um grito que não encontra boca, nem sentido. A transformação espreitava nos cantos da minha consciência, mas eu a mantinha do lado de fora. Ainda não. Não ali. Não agora. Talvez por medo. Talvez por orgulho. Talvez por ela.

No fim da noite, fui parar no bar da Riachuelo. Um dos poucos lugares que não perguntam quem você é. Pedi uma cerveja e me escondi no canto mais escuro, onde as lâmpadas não chegam e a solidão parece confortável. E então, ela entrou.

A garota da cafeteria. Camisa clara, cabelo preso de um jeito distraído, sacola com livros. Olhou o ambiente com estranhamento. Quando me viu, hesitou. Mas veio até mim.

— Serrano?

— Nem eu esperava me encontrar aqui — falei, empurrando a cadeira vaga.

Ela sentou. Os olhos eram calmos. Mas havia algo ali. Um tremor contido. Um saber.

— Vi seu nome numa matéria antiga. Aquela sobre os bairros em que os ferais somem. Você escreveu?

— Escrevi. Escrevo pra não surtar.

— Funciona?

— Funciona mal. Mas funciona.

Ela riu, mas o riso vinha com dor. Como se carregasse uma pergunta sem nome.

— Eu lia seus textos e achava que você era outro. Um cara maior do que a dor. Mas agora vendo você assim...

— Quando escrevo, sou outro. Um que não precisa fingir que é forte.

— E agora? Quem é você?

Quis responder com poesia. Mas só consegui dizer:

— Alguém que ainda sente. Mesmo querendo parar.

Ela ficou em silêncio. O bar pulsava em volta, mas a mesa parecia fora do tempo.

— Você acha que eu sou uma de vocês? — ela perguntou.

Quis dizer "sim". Quis dizer "nós". Mas alguma parte de mim ainda temia tocar aquilo. Porque dizer era tornar real.

— Acho que você sente quando a lua chama — sussurrei.

Ela olhou pela janela. A lua agora era redonda, cheia. Seu rosto estava calmo. Não havia susto, nem medo. Mas também não havia certeza.

— Talvez — respondeu. — Talvez eu sinta, mas ainda não sei o que é.

Ficamos ali. Bebendo refrigerante em silêncio. E a cidade girando lá fora, como um cão velho que esqueceu o próprio nome.

Ela não se transformou.

Nem eu.

Mas algo mudou.

Algo em nós dois entendeu o outro. Como quem compartilha um segredo sem dizê-lo.

E isso já era mais do que qualquer noite me deu até hoje.

• Capitulo 3 — Silêncio em Trânsito

Costumo falar com cachorros e gatos na rua.

Eles não me entendem — e por isso falo com eles.

Não tentam interpretar, nem aconselhar.

Não fazem perguntas nem tentam salvar.

Apenas escutam com os olhos.

E depois seguem seu caminho.

Talvez seja isso que eu ando buscando: ser ouvido sem ser decifrado.

Meu nome é Yohan. Tenho 27 anos e moro sozinho — ou quase — no bairro da Liberdade, São Paulo. O sobrado em que estou é velho, com umidade escondida sob as tintas claras, e telhas que rangem quando venta. Divido o aluguel com minha irmã mais nova, mas ela praticamente mora na casa do namorado, um cara que tem uma cara que não gosto e um perfume que me dá dor de cabeça bem lá no fundo da minha mente.

O andar de cima é meu: quarto, banheiro, um microcorredor onde deixo meus sapatos, e uma janela que dá para uma parede bege com grafites apagados. Na maioria das noites, durmo com a janela aberta. O som dos trens e buzinas me acalma. Tem algo reconfortante na certeza de que a cidade continua acordada mesmo quando eu não estou. Quando não durmo lá, durmo na rede da varanda. O ar lá é mais “sujo”, mas tem um certo aspecto acolhedor.

Meus móveis são quase todos resgatados da rua ou doados por conhecidos. A cama, por exemplo, era da minha avó. O colchão afunda do lado esquerdo, e às vezes acordo com uma leve dormência na perna. A estante de livros está inclinada. Não sei se pelos anos ou se pela maneira que a parede foi construída. Nunca tentei consertar.

Tenho livros que nunca li. Alguns comprei só pela capa. Outros porque tinham anotações nas margens que me deram a impressão de que alguém antes de mim entendeu algo que eu ainda não entendi.

Eu trabalho como motorista de aplicativo.

De dia eu durmo. Às vezes sonho com lugares que nunca vi. Outras vezes acordo no meio do pesadelo sem lembrar o que me assustou. Pela tarde, faço café passado e escuto alguma coisa no fone de ouvido. Bebop instrumental, jornais, podcasts de “true-crime" e afins.

À noite, ligo o carro, conecto o celular e espero alguém aparecer no mapa.

Hoje o céu estava limpo. A cidade parecia até menos pesada. Peguei a primeira corrida às 19h02: um rapaz de blazer desabotoado, indo da Vila Mariana até o Terminal Barra Funda. No banco de trás, ele mascava um chiclete que cheirava a tutti-frutti.

— Você acredita em coincidência? — Ele perguntou, de repente.

— Não sei. Depende do dia.

Ele riu. — Boa resposta.

Depois disso, ficamos em silêncio. Gosto de passageiros que sabem parar de falar.

Entre corridas, costumo parar em um posto na Radial Leste. Lá tem um banheiro limpo e um frentista que me chama de “senhor”, embora eu nem pareça tão velho. Talvez pela forma que falo. Ou pelo fato de que uso óculos de grau com armação de tartaruga.

Dirigir à noite faz com que eu veja a cidade de outro jeito. Não como um lugar onde as coisas acontecem, mas como um organismo vivo. Um corpo adormecido, respirando luz pelas janelas.

Já levei de tudo no carro. Casais brigando. Moças chorando. Homens que dormem profundamente a caminho de casa. Teve uma vez que uma mulher entrou com um peixe num balde, me pediu silêncio e ficou olhando pela janela até chegar em uma casa, que eu apenas posso supor que seja dela.

Quando a noite vai afundando, sinto minha cabeça flutuar. Um tipo de paz quase inquieta. Como se eu estivesse assistindo à minha própria vida de fora, sem necessidade de fazer sentido.

Não costumo parar para comer. Mas quando o estômago dói ou a cabeça fica muito pesada, encosto num trailer de yakisoba perto do Viaduto Santa Ifigênia. O cozinheiro, um senhor de bigode fino e camiseta do Corinthians, me trata como se fôssemos amigos de infância. Nunca pergunto o nome dele. Ele também nunca perguntou o meu. É um cara gente boa. Apenas sei disso.

Hoje, enquanto comia sentado em uma cadeira daquelas com uma marca de bebida, vi uma mulher com um vestido amarelo e uma mochila de couro parada do outro lado da rua. Ela parecia perdida. Não no sentido dramático, só... deslocada. Como se estivesse num lugar entre lugares.

Por um segundo, achei que fosse me chamar. Mas ela olhou para trás, atravessou e desapareceu numa viela.

Voltei pro carro e liguei o ar. Havia um cheiro estranho no estofado, talvez de algum passageiro anterior, como uma mistura de perfume, cinzas e suor. Dirigi por mais uma hora antes da próxima corrida. Um homem calado, de olhar afundado e mãos trêmulas. Subiu e desceu do carro em silêncio, como se atravessasse a própria sombra.

Já perto das três da manhã, passei por uma rua que eu não lembrava de existir, atrás de um cemitério abandonado. Não tinha casas, só um muro pichado e postes que piscavam intermitentes. De longe, vi um cachorro branco parado no meio da pista. Reduzi. Ele não se mexia. Quando parei completamente, ele me olhou — e juro, por um segundo, senti que alguém dentro de mim tinha sido reconhecido.

Um sentimento primal como o de uma presa vendo que um predador o encontrou tomou conta de mim. Sei que conseguiria sobreviver em uma luta contra aquele “ser”, afinal, estava em um carro e ele estava na rua. Mas ainda assim, todo meu corpo parecia se alarmar por aquele olhar tão simples.

Mas o momento passou. O cão atravessou devagar e sumiu entre os galhos. Liguei o carro de novo e segui, como se nada tivesse acontecido. Mas, por dentro, alguma coisa tinha deslocado. Como um relógio adiantando meio segundo.

Quando parei no acostamento do Minhocão para tomar um ar, o céu já ameaçava mudar de cor. A cidade se transformava novamente, preparando-se para acordar. Gente varrendo calçada. Luzes apagando. Carros de entrega surgindo. A mesma cidade, mas com outra pele.

Encostado no capô, ouvi um grupo de pássaros cantando sobre fios de luz. Um canto afinado, quase triste. Pensei: talvez todo esse ruído da cidade seja só uma forma de não encarar o que há dentro do silêncio.

Na volta, esqueci o caminho usual. Peguei uma rua nova, que me levou para um bairro que parecia parcialmente fora do tempo. As placas antigas, a padaria ainda com vitrine de alumínio, a banca de jornal aberta com uma senhora varrendo a frente.

Dei a volta no quarteirão e estacionei. Fiquei olhando aquela cena comum como se fosse um sonho simples. Uma senhora me viu e sorriu, como quem reconhece alguém que não via há tempos. Acenei com a cabeça, tímido. E fui embora.

Cheguei em casa pouco antes das cinco da manhã. O céu já clareava e as aves começavam a fazer seus sons indecifráveis. Lavei o rosto na pia da cozinha e fiquei encarando a água escorrendo antes de ir dormir.

O despertador tocou às 14h. Toque estranho pra quem mal dormiu, mas essa é a rotina: descanso os olhos entre as rachaduras da parede, sonho com ruas que nunca estive, e acordo antes de o corpo querer. A luz do dia batia enviesada, meio dourada, meio poeira suspensa. Fiz café com o mesmo pó da semana passada. A água demorou pra ferver. Pensei em nada. Só esperei.

Com o caneco na mão, fiquei olhando os carros passando lá fora. A Liberdade é um bairro cheio de vida, mas às vezes até no fim de mundo há silencio. Hoje era assim. Nenhuma criança gritando. Nenhum rádio alto. Só o zumbido do trânsito como um mantra. Fiquei ali até o café esfriar. Depois tomei assim mesmo.

Abri o aplicativo, conectei o celular no painel do carro e comecei. Primeira corrida foi tranquila. Segunda também. Mas lá pela quinta, quando o céu começava a querer escurecer e a cidade a vestir sua armadura noturna novamente, algo esquisito aconteceu.

A notificação apareceu no meu celular: Corrida agendada — Nome do usuário: DESCONHECIDO.

Isso não era comum. Nem um apelido. Nem iniciais. Só "DESCONHECIDO".

Local de partida: Avenida Celso Garcia, perto da estação Belém. Destino: "sem informação".

Por algum motivo, aceitei.

Cheguei no local. Uma esquina mal iluminada, com uma banca de jornal fechada e uma árvore que parecia torta demais pra ser real. Esperei. Minutos passaram. O tempo se alongou. Já ia cancelar quando a porta do passageiro abriu.

Um homem entrou. Usava chapéu. Rosto fino. Olhos fundos. Roupas que pareciam antigas — não velhas, mas como se ele tivesse saído de outra década.

— Boa noite — ele disse.

— Boa.

— Pode seguir em frente.

— Pra onde?

— Eu aviso.

Respirei fundo. Engatei a marcha. Já que mordi a isca, decidi apenas seguir com o roteiro.

Fomos em silêncio por alguns quarteirões. Ele olhava pela janela, como se estivesse revendo cenas de um filme esquecido. Cada semáforo parecia um marco. Cada esquina, uma memória. Em certo momento, ele apontou:

— Ali. Vira ali.

Virei.

Entramos numa rua estreita, coberta por árvores que pareciam se inclinar umas sobre as outras. O GPS travou. O sinal caiu. Nenhuma alma viva por perto. Só casas com grades altas e luzes apagadas.

Ele quebrou o silêncio:

— Você escuta quando a cidade fala?

— Sei lá... Não sei. Eu tento.

— Pouca gente tenta. A maioria só fala.

Olhei pelo retrovisor. Ele sorria de leve, como se tivesse ouvido uma piada que ninguém contou.

— Pode parar aqui.

Parei. Ele abriu a porta devagar. Antes de sair, se virou:

— Tem algo vindo para você, Yohan. Fica atento.

Congelou minha espinha. Não por medo. Mas, porque eu nunca tinha dito meu nome.

— Como você sabe...?

Ele já tinha saído. Caminhava em direção a uma viela que parecia mais sombra que espaço.

Esperei alguns segundos. Desliguei o carro. Liguei de novo. Tudo travado. Nenhum sinal. Nenhum pedido. Nenhuma corrida. Só silêncio e aquele não-nome na lista de viagens: DESCONHECIDO.

Voltei pra casa mais cedo naquela noite. Na janela do quarto, ouvi um latido distante. Talvez um cachorro. Talvez um aviso.

Fiquei acordado até o dia nascer, esperando algo que eu nem sabia nomear.

• Capitulo 4 — Ruas Latejantes.

"Não existe amor em SP. Os bares estão cheios de almas tão vazias... A ganância vibra, a vaidade excita. Devolva minha vida e morra, Afogada em seu próprio mar de fé... Aqui ninguém vai pro céu.” — Criolo

Encostei o carro perto da Galvão Bueno, no ponto exato onde a luz pisca errado. Três da manhã. A rua parecia estar respirando sozinha. Os postes suavam. A cidade faz isso quando pensa que ninguém tá olhando.

Deixei o motor ligado, rádio num jazz qualquer — talvez Kamasi, talvez só algum cara bravo demais pra tocar em horário comercial. Acendi um cigarro. Gosto de ver a fumaça sumindo. Dá uma sensação de controle, mesmo que passageira. É como dirigir bêbado e saber que não vai bater.

Eu gosto dessas horas. Quando ninguém espera nada de ninguém. Quando até o GPS perde a vontade de corrigir.

Hoje um passageiro me falou que eu tenho olhar de quem lembra demais. Eu ri. Não respondi. Ele tava certo. Lembro até do que não vivi. De becos que nunca entrei, mas consigo desenhar no guardanapo se me pedir. Vai entender. Se for bem antigo, lembro como a palma da minha mão. Mas vai perguntar oque eu comi ontem pra ver se eu lembro.

O celular vibrou: Rua do Manifesto. Lá no Ipiranga.

Dirigi com as janelas abertas. A brisa tava suja, cheia de vozes engasgadas. Passei por uma senhora rezando pro muro. Um gato estirado e sonolento no capô de um carro. Gente dormindo em cima de papelão como se fosse a coisa mais normal do mundo. Talvez seja.

A passageira entrou sem falar nada. Jovem. Camiseta de banda que não conheço. “Artic Monkeys.” Nome estranho. Mochila cheia de botões.

— Já pensou que a gente pode tá num sonho de outra pessoa? Ou em uma simulação? — ela perguntou, do nada.

— Se for, quem tá sonhando é alguém cansado.

— Você não parece cansado.

— Eu treino no espelho.

Dirigimos em silêncio por uns minutos. O sax da música começou a ficar mais frenético, como se tivesse tentando avisar de alguma coisa. Eu gosto quando isso acontece. Quando a trilha sonora se alinha com a sensação ruim que dá na barriga.

— Acho que você tem algo que não saiu de você ainda, sabe? — ela disse, mexendo no zíper da mochila. — Vi uns videos online e sua resposta me lembrou disso.

— Tipo verme?

— Tipo coisa que sai na terapia.

— Se eu tivesse tempo pra ir, acho que nem precisaria.

Ela riu. Ou fingiu que riu. Desceu perto de um viaduto, sem dar tchau, e sumiu entre as sombras.

Fiquei parado. Olhando pro retrovisor. Nenhuma sombra diferente. Nenhum vulto. Nada.

A música mudou pra um tema mais lento. Baixo pulsando. Respiração em forma de som.

Fui até o posto da Tamandaré. Comprei um guaraná quente e fiquei sentado na mureta, encarando o asfalto como se fosse um quadro.

Tem noite que parece que o mundo tá sendo reescrito. Só que em braile. E a gente só encosta nas letras e tenta entender pelo toque. Mas nada faz sentido.

Nessa hora, eu nem sentia sono. Nem fome. Só uma vontade besta de continuar dirigindo. De não parar. Continuar e continuar até voltar em casa de novo, dormir, me levantar, ir pro carro, dirigir de novo — como se tudo fosse parte do mesmo loop gasto que chamam de vida adulta. Mas a real é que não era vontade. Era exaustão camuflada de função. Era o tipo de coisa que só se sente quando o mundo já te reduziu a isso: movimento, obediência, produção.

Tô falando de rodar horas e horas por centavos, com aplicativo tirando fatia, gasolina subindo e passageiro querendo balinha e silêncio. Tô falando de vender meu tempo e meu corpo, mas sem direito a plano de saúde ou fim de semana.

Tem dia que parece que tão me sugando pelas pontas dos dedos. Como se a tela do celular sugasse energia vital. Eu olho o mapa e é tipo um feitiço — um GPS que me enfeitiça a rodar feito fantasma.

Esses políticos falam bonito — de um lado prometem dignidade, do outro liberdade. Mas os dois lados me enxergam igual: como dado. Como número. Como recurso humano, que é só uma forma bonitinha de falar carne útil. Falam em “nova economia”, mas só trocaram o patrão pelo algoritmo. Agora a gente pede esmola pra IA que decide se você merece corrida ou não. Chamam isso de feudalismo digital — só muda o castelo, agora é um prédio com servidor na Califórnia.

E a gente aceita. Porque foi isso que sobrou. Dirigir. Fingir que tá tudo bem. Juntar moedinha pra pagar boleto. Engolir o nojo de fingir simpatia quando tudo que cê queria era encostar a cabeça no volante e sumir. Ser esquecido por cinco minutos. Ou talvez encostar em uma .38 e ser esquecido pra sempre.

Sabe o que cansa mais? Não é o trabalho. É o fingimento. A performance eterna de parecer "de boa". Como se essa merda toda fosse escolha nossa. Como se o sistema não tivesse te engolido antes mesmo de você entender o jogo.

Eu não sou gente pra eles. Sou só mais um número que precisa bater meta. Um produto rodando sozinho na cidade. Uma função. Um "motorista parceiro". Mas que parceria é essa que te quebra e te chama de ingrato se você para, porra?

Talvez eu continue dirigindo só porque é a única coisa que me resta. Me manter em movimento. Fingir que tenho direção. Mas no fundo, sou só mais um zumbi a gasolina. Um cachorro obediente do capital.

E quando isso estourar de vez, quando os corpos começarem a falar mais alto que os likes e os trends, vão fingir que se importam. Vão soltar nota de repúdio. Vão culpar “o momento”. Mas não vai adiantar. Seja nós, motoristas, licantropos, homossexuais, periféricos... Eles não ligam.

Ninguém liga.

Apenas ligam pra quem vai ter que limpar a sujeira.

Terminei de comer meu lanche e joguei as embalagens no lixo, voltando de novo ao carro. Afinal, querendo ou não, eu ainda tinha boletos pra pagar e não poderia fazer nada pra impedir o mundo de girar.

Tava quase indo embora quando ouvi o som. Não era barulho de carro. Nem de gente.

Era como se a rua tivesse tossido.

Levantei e sai. O rádio do carro continuava ligado ao som de Tom Jobim, mas a música tava diferente. Mais grave. Tipo quando o disco derrete um pouco no sol. Fui andando devagar pela calçada. As luzes do poste piscavam como se estivessem hesitando.

E aí eu vi.

No fim da rua, perto do descarte de entulho da subprefeitura, um corpo atravessado no chão. Um homem. Mas o que prendeu meu olho foi o que tava em cima dele. Uma coisa. Um bicho. Um vulto escuro, grande, dobrado como se tivesse nascido da sombra.

Tava devorando ele. Mas não como um animal faminto. Tinha método. Tinha fúria contida. Um movimento estranho, entre o ritual e a crise. Um animal humano. Ou um humano animal. Era tão detalhista em sua ira que chegava a dar medo.

Na hora pensei que fosse crack nele. Ou delírio em mim. Mas aí a coisa levantou a cabeça.

E os olhos brilharam. Não como reflexo. Como farol.

Por um segundo, me encarou. Só que não me viu. Como se eu fosse vidro. Como se eu fosse irrelevante.

E então correu. Pra cima de um muro. Sumiu. Nenhum barulho. Nenhum grito. Só ficou o som do saxofone vindo do carro, tocando como se estivesse tentando avisar alguma coisa que a gente só entenderia depois.

Cheguei perto do corpo. O cara ainda respirava. Mas o pescoço… meu Deus. Como é que alguém sobrevive com metade do rosto arrancado?

Chamei a ambulância. Fingi que tinha passado e achado. Gaguejei, tropecei em frases. Eles disseram que iam mandar alguém. Mas eu sabia. Aquilo ia vazar. Ia chegar nos jornais. Nos grupos. Nos olhos certos. Minha paz ia provavelmente sumir, mesmo eu não tendo feito nada.

E chegou.

Dois dias depois, vi no celular: "Homem sobrevive a ataque misterioso com ferimentos gravíssimos no rosto. – Polícia investiga possível envolvimento com seita canibal ou grupo radical."

Claro que ninguém disse a palavra. Licantropo. Mas tava ali, nas entrelinhas. Na foto borrada do rastro na parede. Na ausência de marcas humanas. Nos olhos de quem entrevistava e sabia que tinha algo errado. Que algo novo, ou pior — algo velho demais pra ter nome — voltou.

Eu apaguei o histórico da corrida. Queimei a camiseta. Troquei de número.

Mas a imagem não saiu da cabeça. Nem o sax do Tom Jobim. Nem o olhar daquela coisa.

E mesmo sem saber direito o que era, tive certeza de uma coisa somente: alguém ia cavar isso mais fundo.

Alguém com estômago.

Alguém com palavras afiadas.

E que Deus ajude aquele cara que foi atacado e a quem for analisar isso.

Porque o que vi naquela madrugada… aquilo não era o fim de uma noite... era o começo de uma contagem regressiva pra sabe-se-lá oque.